Autor Tópico: Lolita lutando kendo  (Lida 2519 vezes)

Offline Fabiyo

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Lolita lutando kendo
« Online: Dezembro 06, 2006, 22:30:17 »
Pessoal, tirei esse trecho do livro “Lolita” de Vladimir Nabokov (página 234), onde o narrador descreve sua amada jogando tênis. Fiquei impressionado com as sutilezas da narrativa (e sua relação com o budo). Na história, Lolita tem 14 anos e Humbert (o narrador) passa dos 40, e eles têm um caso.

Como eu entendi que esse trecho contém uma parte significativa da filosofia das artes marciais, troquei todos os “tênis” por “kendo”, “raquete” por “shinai” e assim por diante, o resultado é curioso. Alguns talvez não estejam familiarizados com os termos específicos do kendo, mas ainda assim acho que a leitura vale a pena. (Tentei fazer uma versão com karate, mas não deu muito certo.)

Divirtam-se.


(...)

Mas quão linda era ela ao tecer aqueles delicados sortilégios, na sonhadora execução de seus feitiços, e deveres de casa! Em certas noites atrevidas, ainda em Beardsley, eu também a fazia dançar para mim com a promessa de algum presente ou alguma surpresa; embora aqueles seus saltos triviais, de pernas abertas, mais se assemelhassem aos das chefes de torcida nos jogos de futebol americano do que aos movimentos ao mesmo tempo langorosos e bruscos das estudantes de balé de Paris, os ritmos de seus corpo ainda não inteiramente núbil sempre me haviam dado prazer. Mas tudo isso não era nada, absolutamente nada, quando comparado à indescritível comichão de volúpia que eu sentia ao vê-la lutar kendo – a sensação delirante, provocadora, de estar dependurado à borda de um esplendor e de uma harmonia que não eram desse mundo.

Apesar de sua idade avançada, ela era mais ninfeta do que nunca, com seus membros cor de damasco, ao vestir um bogu! Senhores alados! Nenhum além é aceitável se não a incluir tal como a via naquele dia, num dojo entre Snow e Elphinstone, quando tudo era perfeito: o hakama e a o kendogi azuis-escuro, a cintura delgada, os tornozelos também cor de damasco, o men cujos himos lhe cingiam o tenogui e terminavam num nó bamboleante, deixando nua a jovem e adorável nuca adamascada que me tiravam o fôlego, com aquele pubescência e aqueles ossos delicadamente cinzelados, e as costas acetinadas que se afinavam a cainho da cintura. O shinai me custara uma pequena fortuna. Idiota, três vezes idiota! Eu poderia tê-la filmado! E agora a teria comigo, diante de meus olhos, na sala escura de minha dor e de meu desespero!

Antes de iniciar o movimento do suburi, ela costumava imobilizar-se, descontraindo-se por um ou dois compassos de tempo forrado de azul-escuro, e freqüentemente relaxava os ombros algumas vezes ou raspava de leve o pé no chão, sempre sem pressa, sempre desatenta com relação à contagem, sempre alegre – como tão raramente o era na vida sombria que levava fora dos treinos. Tanto quanto eu imagine, seu kendo era o ponto mais alto a que pode chegar a arte do faz-de-conta de uma jovem criatura, embora para ela, estou certo, tudo aquilo correspondesse à geometria da mais comezinha realidade.

A imaculada clareza de todos os seus movimentos tinha uma contrapartida acústica no som puro e vibrante de cada batida. Ao penetrar na aura de seu controle, o shinai de alguma forma se tornava mais branco, sua resiliência mais rica, e o instrumento de precisão que Lô aplicava sobre ele parecia infinitamente preênsil e incisivo no momento do contato envolvente. Na verdade, seu estilo era uma imitação absolutamente perfeita do melhor kendo – sem quaisquer fins utilitários. Como me disse certo dia Electra Gold (irmã de Edusa e uma jovem sensei notável), enquanto eu me sentava num banco duro e palpitante vendo Dolores Haze fazer gato-sapato de Linda Hall (e perder para ela): “Dolly tem um ímã no centro do shinai, mas por que diabos ela tem tão pouca vontade de ganhar?”. Ah, Electra, que importância tinha isso, quando Lô era tão graciosa! Lembro que, ao vê-la lutar pela primeira vez, senti-me engolfado por uma convulsão quase dolorosa de plenitude estética. Minha Lolita tinha um jeito especial de dobrar e erguer o joelho esquerdo no início do amplo e elástico ciclo de seu kirikaeshi, quando então se formava e pairava sob o sol por um segundo uma teia vital de equilíbrio entre a ponta do pé de apoio, a prístina axila, o braço luzidio e o shinai puxado bem para trás – e ela sorria com dentes cintilantes para o shinai da adversária, no zênite do tênue e poderoso cosmo por ela criado com o único propósito de abatê-lo de um golpe límpido e ressonante de seu dourado chicote.

O suburi de Lô era todo feito de beleza, precisão, juventude e pureza de trajetória, mas, apesar de sua impressionante velocidade, era bem fácil de defender, porque faltava à longa e elegante curva do movimento qualquer efeito ou malícia.

E pensar que eu poderia tê-la imortalizado em tiras de celulóide todas as suas batidas, todos os seus encantamentos, me faz hoje gemer de frustração. Significariam tão mais do que as fotografias que queimei! Os wazas estavam para seu kihon assim como o ofertório está para uma balada poética, pois minha querida havia sido instruída a fazer suriashi com seus pés ágeis, vívidos e descalços. Impossível escolher entre sua batida de kaeshi-do ou de nuki-men: era uma imagem no espelho da outra – e minhas entranhas ainda ressoam com aqueles disparos que se multiplicavam num eco cristalino e nas exclamações de Electra. Uma das pérolas do keiko de Dolly era um kote curto que Ned Litam lhe havia ensinado na Califórnia.

Ela preferia o teatro à natação, e a natação ao kendo; insisto, porém, em que, se algo dentro dela não houvesse sido quebrado por mim – não que eu o soubesse então! – Lô teria, além de seu estilo perfeito, a fome de vencer, transformando-se numa verdadeira campeã. Dolores no Bandeirantes, sobraçando dois shinais. Dolores nas revistas especializadas. Dolores tornando-se sensei. Dolores fazendo o papel de uma jovem samurai num filme de Kurosawa. Dolores e seu marido-sempai, o velho Humbert – grisalho, humilde e taciturno.

Não havia nada de errado ou de fraudulento no espírito de seu shiai – a menos que se considerasse sua alegre indiferença com respeito ao resultado da luta como uma artimanha da ninfeta. Ela, que era tão cruel e ardilosa na vida de todos os dias, revelava uma inocência, uma franqueza, uma cortesia na colocação dos golpes que permitia a uma kenshi medíocre mas resoluta, por mais canhestra e incompetente que fosse, chegar a vitória com wazas frouxos e sem direção. Apesar de sua baixa estatura, ela cobria os quase cem metros quadrados do dojo com maravilhosa facilidade, desde que entrasse no ritmo de uma longa troca de golpes e conseguisse dirigi-los: mas qualquer ataque abrupto ou mudança súbita de tática por parte de sua adversária a deixava sem defesa. No ponto decisivo – que, tipicamente, era mais forte e mais elegante que o primeiro (pois Lô não tinha nenhuma das inibições do vencedor cauteloso) – tocava o alto do men com um vibrante acorde de harpa, reverberando para fora do dojo. A pedra preciosa de seu ataque era desviada e posta longe do centro de Lô por uma adversária que parecia ter quatro pernas e empunhar um remo torto. Seus potentes golpes e adoráveis movimentos aterrisavam ingenuamente no inimigo. Repetidamente ela perdia o centro do kamae, o que terminava no ippon da adversária – e alegremente simulava decepção assumindo uma postura de balé, a ponta do shinai tocando o chão e o kote direito apoiado no do. Sua graça e suas chicotadas eram tão inócuas que ela não conseguia ganhar nem mesmo de mim, com meu fôlego curto e meu antiquado hidari-jodan.

(...)
初心忘るべからず – Shoshin wasuru bekarazu